… a insustentável leveza do mijo!

rapaz-mijo

tenho comigo, entre muitas outras memórias, a da busca atrapalhada das chaves de casa no bolso das calças, no regresso das compras, ao que se seguia o tilintar demorado de sacudidelas para alinhar a chave certa e o arranhar dos carretos na fechadura a precisar de afinação.

nós e a fechadura, a luta semanal, e os carretos na porta fechada estancados como jumento teimoso que não cede à aflição dos donos; mas os carretos lá cediam lubrificados por uns cavernosos palavrões e amaciados a pontapé.

tenho memória de a seguir sermos envolvidos pelo cheiro da casa ao arrojar-nos pela porta, dos impropérios (que nunca irão constar nos acordos ortográficos) que soltávamos enquanto nos lançávamos contorcidos e em espasmos  numa corrida por cima dos sacos das compras espalhados à entrada, em fuga para a frente, para ver quem primeiro conquistava a posse da casa de banho.

tenho memória, também, da sensação de salvação e alívio da “mijinha” semanal que se seguia, como cão que regressado ao seu canto preferido alça da perna para reafirmar a posse do seu território;

memória de alívio e salvação, dos meus por perto e envolto pelo que me reconforta e me torna no que sou, sorriso infantil e “mijinha” prolongada até ao último gotejo, em esforço e em prazer, contorcido e espremido até os rins só para ter ainda mais certeza de que estou, enfim, chegado ao “meu” espaço.

do lado de fora, o teu berro aflito era a amarra à realidade:

“foskas-se”… saaaaai daíiii… “cum’camandro e cum’catano” … despáaaaaacha-ttte!

– imagino-te, de vez em quando, naqueles momentos em que a saudade nos invade pelo estomago e se confunde com fome, a olhar de soslaio para o tampo da sanita levantado e a desejar-me a irromper em corrida para ir “à mijinha”, só porque sim, porque a ausência enche-nos de uma fome dessas e até uma “mijinha” pode ser um ritual importante.

da minha parte, deixa que te diga… saudades, tento afastá-las ao “estalo e à biqueirada”, mas vencem-me sempre, com igual violência e ainda mais… e a “puta” da ausência… é de forma tal que a sinto nos rins…. deve ser da vontade que me cresce cá dentro, vontade de voltar ao “meu canto” e de esforçar os pertences até despejar um vagalhão só para te ter “aflita e exaltada”, do lado de fora mas perto, e me sentir novamente em casa, mesmo que só por uma valente “mijinha”, marcando de canto um sorriso infantil e malandraço, a pensar cá para mim:

“gooolo… estou em casa!”

… e a sorrir certo de que as coisas importantes da vida não têm que ser arquitectadas em planos muito rebuscados.